A verdadeira África
No limiar do terceiro milênio, qualquer um
que olhar ou quiser se interessar pela África, não
pode dispensar-se de refletir seriamente sobre
as causas profundas, internas e externas,
que provocam os conflitos, que continuamente
funestam e empobrecem o continente
em todos seus aspectos.
Terra de todos e de ninguém
Muito freqüentemente, a África é apresentada pela mídia (sobretudo do Ocidente) como um mundo atormentado por conflitos, guerras tribais e civis; ou também como o continente da fome, castigado pelo subdesenvolvimento, necessitado de tudo. Segundo o recente Programa Alimentar Mundial (WFP) e African Hunger Alert, pelo menos 38 milhões de africanos estão em situação de risco, sobretudo na região subsaariana e particularmente na Etiópia.
Sem esquecer a desertificação, que se soma às tantas feridas do continente. Outro fenômeno desastroso é a epidemia da Aids, que dizima as populações, especialmente os jovens, pondo em risco a própria sobrevivência futura do continente. Existem hoje na África milhões de refugiados, que vão do Sudão ao Burundi e à Ruanda, de Angola à Serra Leoa e à Libéria, da Costa do Marfim à Somália... e poderíamos continuar a lista.
Praticamente, tratar-se-ia de uma África que nada conta, que pode não valer nada e que nem deve valer nada. Ao mesmo tempo, estamos convencidos de que a África não é, e jamais deveria ser, um “terreno de jogo” para as potências econômicas e as multinacionais e, menos ainda, uma abstração, porque ela se apresenta, de fato, seja como o berço da humanidade (basta pensar na herança universal de Tebas e de Alexandria, no atual Egito, e de Cartago, por exemplo), seja como sofredora (onde a vida se tornou difícil em todos os níveis) e, hoje, como terra da promessa, pois contém grande parte dos recursos naturais e alimentares da humanidade. A África se apresenta, assim, como terra de todos e de ninguém.
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No contexto da globalização, perguntamo-nos:
- que lugar ocupa o continente e qual é seu papel para o próprio desenvolvimento? Seria necessário saber se, em tal processo, a África assimila ou se é assimilada; se é considerada como mercadoria, e que, portanto, fica sujeita às leis do mercado, e a que preço está avaliada.
A outra África
A África tem, pois, a capacidade de virar a página e de dar novo sentido à sua história. A mudança política de governo em alguns países, por exemplo, no Quênia, na África do Sul e no Senegal, é semente de esperança para uma nova África, almejada por todos, e que só será edificada com a contribuição de todos, inclusive com os da diáspora.
Alguns nomes excelentes podem ser citados como sinais de esperança:
Wole Soyinka (prêmio Nobel de Literatura), Ki Zerbo (historiador), Nelson Mandela (prêmio Nobel da Paz e ex-presidente da África do Sul), Kofi Annan (Secretário-Geral da ONU), a senhora Wangari Maathai (prêmio Nobel da Paz). Eles são uma contribuição preciosa para a civilização africana e para a edificação de uma nova humanidade. É certamente possível estimular o progresso e a pesquisa para o desenvolvimento do continente em todos os aspectos:
cultural, econômico, político, baseando-se na própria mentalidade africana. A civilização africana tem origem comum e é urgente reconsiderar este aspecto para seu desenvolvimento. A atual divisão política africana foi um ato de arbitrariedade do colonizador.
As fronteiras impostas por ele secionaram tribos e dividiram etnias, transformando-as em inimigos comuns. Os especialistas consideram o período colonial na África como a época da morte de suas grandes culturas e civilizações. A instabilidade política de muitos países nasceu naquela época. O colonialismo, porém, não conseguiu criar uma nova civilização ou cultura africana. O que o sistema colonial criou foi uma estrutura superficial, sem qualquer raiz profunda na cultura africana original. É necessário retornar a esses espaços culturais para redescobrir a identidade africana, sobre a qual construir um futuro sólido, um progresso que corresponda ao caminho gradual do povo.
É, pois, possível recuperar a harmonia, a paz e a unidade na sociedade africana, revalorizando as instituições sociais de base, reabilitando as figuras carismáticas, como as dos chefes tribais e líderes de aldeias, que, mesmo respeitando os atuais sistemas de governo (com chefes-de-estado e chefes-de-governo), e neles se integrando, permanecem – todavia – como verdadeira referência na organização social africana. Seria também desejável seguir o exemplo de alguns países, como Camarões, em que os governantes introduziram o sistema político duplo, quer dizer: a câmara dos chefes tradicionais ao lado da dos deputados. Tal mecanismo evita que os governantes deslizem para um “Estado de Poder” ou um “Estado de Governo Autoritário”, o que torna possível estabelecer-se um modelo de governo em que política e economia estejam completamente a serviço dos cidadãos, um modelo de governo “à africana”.
Devemos elogiar o trabalho realizado pela OUA (Organização da Unidade Africana) – ver box, pág 24 –, mas ainda não se concretizou o “milagre econômico” continental e nem um sistema monetário único para a África toda. Na área econômica, muitas ações já foram realizadas: o lançamento do Mercado Comum da África Austral e Ocidental (COMESA); o espaço de Livre Comércio no contexto da Comunidade da África do Norte; as decisões sobre o sistema monetário, tomadas e adotadas pela Comunidade Econômica dos Estados da África do Oeste (ECOWA), que levaram à elaboração de um protocolo de intenções entre a Comunidade Econômica Africana e as Comunidades Econômicas Regionais.
Processos de unificação
A novidade, hoje, é o nascimento da União Africana, por ocasião da celebração do 38o aniversário da OUA, em Adis-Abeba (Etiópia). Se a OUA exerceu um papel preponderante na libertação dos países de condicionamentos coloniais, nos anos sessenta, e os levou à independência do Ocidente (pelo menos de maneira formal), o novo organismo – a União Africana – tem a tarefa de libertar o continente do neocolonialismo político e econômico deste mesmo Ocidente que, através da globalização, agora tende a controlar os processos econômicos dos Estados africanos independentes.
A criação de um Parlamento Pan-Africano (PAP) é de capital importância, como também o é a criação de um sistema monetário africano único:
- um Banco Central Africano e uma única moeda para as operações econômicas com todos os sistemas monetários do mundo. Atualmente, mais de 80% dos chefes-de-estado e de governo africanos já aderiram ao projeto da União Africana, a existir, de direito e de fato, quando os membros da OUA ratificarem a Constituição redigida para esta finalidade. A primeira conseqüência positiva da União Africana será derrubar as fronteiras geográficas entre os países africanos. Cada pessoa sentir-se-á cidadã africana. Poderá circular livremente de um país a outro e estabelecer vínculos culturais, políticos e econômicos com todos.
A criação de uma moeda única acabará com a exploração das nações por parte das multinacionais e determinará o valor das matérias-primas para todos os países da União. Isso permitirá um crescimento econômico expressivo no interior de cada nação em relação a seu produto interno bruto. O preço das matérias-primas poderá, assim, ser uniformizado para todos os países da União. A exportação dos recursos será regulada pela União e não será mais concebível que as riquezas de uma nação estejam em mãos de poucos. Uma comunhão, ou partilha de bens, será possível entre os próprios países que, unidos, combaterão o fenômeno da pobreza, na qual está mergulhada, e sem saída, elevada porcentagem da população. As relações entre a União Européia e a União Africana e com os Estados Unidos serão transparentes e será possível colaborar em diferentes esferas: educação, saúde e economia.
De fato, o dr. Geremia Scianca, representante da Comissão Européia, afirmou que os problemas da educação e da saúde são as realidades principais a impedir o verdadeiro desenvolvimento nos países da zona África-Caribe-Pacífico. Cada país poderá desenvolver uma política de auto-suficiência e, assim, reduzir a pobreza, implementando os direitos humanos no respeito à justiça. Sem tais garantias, os países africanos não poderão acompanhar os países ocidentais no contexto da globalização. Ao redor da União Africana nasceu a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD), que, em sintonia com a ONU, mobilizará os esforços a fim de sustentar o desenvolvimento dos países menos favorecidos do continente, com o objetivo de ajudar a integração aos parceiros desenvolvidos, promovendo, assim, o diálogo e novas formas de cooperação internacional.
Hoje, no processo de globalização, todos estão conscientes sobre a necessidade de interdependência:
- o Ocidente e o Oriente precisam da África, assim como também ela necessita tanto de um, como do outro. Porém, se alguns países não forem realmente autênticos no relacionamento com os outros, há o risco de apresentarem um rosto falso de si mesmos e, assim, anularem valores e riquezas, que a própria diferença cultural tem a oferecer, para a fundação de uma comunidade mundial, alicerçada sobre a cooperação, a solidariedade, a partilha, a paz, a justiça e a comunhão.
A ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA
A Organização da Unidade Africana (OUA, organização dos governos e dos chefes-de-Estado africanos) obteve sucesso na sua função porque alicerçou-se sobre sólidas bases culturais do continente. Confira alguns resultados já obtidos: a luta pela independência, pela igualdade, liberdade, dignidade, solidariedade e progresso social; contra a escravidão, o colonialismo, o apartheid e o racismo de governos minoritários, a injustiça e o derramamento de sangue; a solução do conflito entre a Etiópia e a Eritréia; a intervenção na República Democrática do Congo, que levou à convenção de Lusaka; a busca da paz em Serra Leoa; a restauração da paz na República federal islâmica das ilhas Comores; a conferência de paz de Arta em favor da reconciliação na Somália. Atualmente, a OUA está engajada na resolução de conflitos e em responder às necessidades do continente.
Limitemo-nos a pensar nos países da bacia do rio Mano (Serra Leoa, Guiné e Libéria); na situação do Burundi, da qual se ocuparam as negociações de paz de Arusha; no aconselhamento dado aos conflitantes de Angola e no sul do Sudão. O organismo também se preocupa com doenças, principalmente com o vírus da Aids, sem negligenciar o problema da malária e da febre hemorrágica, que ainda ceifam muitas vidas. A OUA desempenhou destacadas funções no processo de democratização dos países africanos, ajudando-os a passar de monarquias autocráticas a formas e sistemas participativos da população à vida política da nação.
Entre os principais avanços culturais, creditados às instituições da OUA, podemos citar: a independência total de quase todos os países africanos; a promulgação da Carta Africana de direitos humanos e dos povos, como complemento das constituições nacionais; o processo de democratização de sistemas políticos, como a superação de governos de partido único, por exemplo.
Um africano ao encontro do outro
por Martin Nkafu Nkemnkia
A vida na família e com os amigos
A cultura africana é uma cultura comunitária:
- o sujeito social não é o indivíduo, e sim a comunidade. É na comunidade que recebemos nossa formação de cidadãos, que somos formados nas tradições, que aprendemos nossa língua e amadurecemos nossa identidade pessoal e cultural. Acho que nossos pais fizeram o melhor, tanto quanto possível, para nos educar aos valores constitutivos de nossa cultura.
Entre os que permanecem vivos em mim estão:
- o valor da família, da hierarquia dos membros do mesmo clã e da sociedade. Tais riquezas passam dos pais para os filhos e sua culminância repousa nos antepassados. São estes que nos inserem na sacralidade da vida e no sentido religioso da existência. Dentro disso tudo, cada qual tem um papel indispensável a cumprir na comunidade. Considerando o agir das pessoas, as atitudes nos diferentes momentos da vida diária, o próprio calendário da semana, do mês e do ano, tudo predispõe a festejos comunitários. Os aniversários e os onomásticos representam momentos especiais para todos festejarem comunitariamente.
Festejar, para nós, é importante em função da vida da família e da comunidade; por isso, eu nunca faltava a uma festa na aldeia e às organizadas nas famílias dos meus amigos. A festa, para mim, continua sendo um lugar da fraternidade, da partilha e da reciprocidade, porque nela reina a alegria, percebida nos rostos, onde a tristeza desaparece. Nesses momentos, a comunicação envolve todo o ser da pessoa e da comunidade. Também o corpo se torna veículo da comunicação através da dança, da música, etc. Assim, a festa é critério de avaliação da capacidade pessoal para se relacionar com os demais.
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O encontro com outros povos e culturas ocidentais
Compreendi que, fora da minha tribo não existem apenas soldados de outras tribos, mas que eles são também meus irmãos. Uma experiência especial marcou-me durante a adolescência. Eu tinha 16 anos quando alguns médicos, membros do Movimento dos Focolares, convidados pelos chefes do nosso povo, chegaram à nossa aldeia para combater a mortalidade infantil que, na época, atingia a maioria das crianças.
Seu empenho e testemunho, além de debelar a mortalidade infantil, marcaram o início de uma nova era para nosso povo. Como eu, muitos jovens sentiram-se atraídos pela mensagem cristã, que caracterizava a vida de tais médicos, e desejavam viver o Evangelho como eles. Porém, nossos povos tinham péssima lembrança da história e do encontro com os ocidentais, que haviam deixado sinais dolorosos: tráfico dos escravos, colonialismo, etc.
Tal domínio originou o conflito entre o mundo africano e o ocidental. Não existia confiança no relacionamento com os europeus, até quando isso parecia indispensável. Havia o medo de iniciar um diálogo entre as duas culturas. Mas aqueles brancos, por sua maneira de ser e de agir, derrubaram completamente nossos preconceitos, fazendo brotar entre todos um clima de amizade e de fraternidade universal. Eles tinham o espírito evangélico, que a todos abraça.
O encontro com outros povos e culturas do mundo
O encontro e a convivência com os membros do Movimento dos Focolares, provenientes de diversos países da África, da Europa, da Ásia e das Américas, tornou-se, para mim, uma chance de ouro para a percepção da própria identidade como cidadão do mundo. Não faltaram dificuldades, mas o desejo de pertencer ao mundo foi mais forte. “O rosto do outro” tornou-se cada vez mais o espelho para minha identidade. Minha cultura africana renasceu, ao me encontrar com as outras culturas do mundo.
Vivendo o Evangelho no dia-a-dia, amadureceu em nós a visão pluridimensional da realidade, que nos une a outros povos do mundo para a formação do cidadão do amanhã. Mas vigiamos sempre sobre nosso relacionamento recíproco. Queremos chegar ao conhecimento e à aceitação do diferente, porém sem reduzir a cultura alheia à nossa própria cultura; queremos cultivar o processo de integração e o diálogo, de maneira a preservar a identidade original de cada um, embora adquirindo, ao mesmo tempo, a novidade que cada cultura oferece.
“Vitalogia africana”
Minha estadia na Itália, por motivos de estudo, marcou-me como uma passagem sem volta. Como eu, muitos jovens africanos invejam o Ocidente pelo desenvolvimento do saber. Quase todos os ocidentais que eu conhecera na África eram profissionais especializados e ocupavam os cargos de maior responsabilidade. Sua ciência consentia isso. Quando me matriculei na faculdade de filosofia para perscrutar a profundidade do pensamento ocidental, sonhava, como todos os estudantes, em me tornar um grande filósofo e, assim, contribuir para o conhecimento do mundo e me aproximar aos mistérios da verdade, fundamento de cada identidade individual-pessoal.No transcorrer dos estudos, reparei, aos poucos, que eles me levavam, sim, a um conhecimento profundo da realidade, visto, porém, apenas pela ótica ocidental.
E me posicionei em atitude crítica frente a isso. Minha intenção era de aprender algo novo, mas também de doar algo da minha cultura. Participei de atividades interculturais em congressos, seminários, fóruns. Cheguei, na época do doutorado, a criar o neologismo “vitalogia africana”, expressão que designa a maneira africana de traduzir o pensamento humano, semelhante ao conceito ocidental de filosofia, mas que também se distingue dele. De fato, a primeira forma de interrogação sobre o homem, pela lógica africana, é uma questão sobre a vida. A resposta é que se pode encontrar o sentido da vida quando se compreende o sentido do outro, através da categoria de relação.
Dicionário intercultural
Agora estou dando minha contribuição ao processo de comunicação e diálogo intercultural, disseminando a cultura, o pensamento e a religião africanos, através de diferentes cursos em universidades eclesiásticas de Roma. Não podia escolher lugar melhor para isso, pois, em cada dia, é possível experimentar, com estudantes de todos os continentes e áreas culturais, as maravilhas das diferentes culturas.
Iniciamos juntos um empreendimento incomum:
- um dicionário intercultural, onde cada um define o mesmo termo, ou expressão, a partir da sua área cultural. Já percebemos que o pluralismo cultural deveria ser procurado na forma como são entendidos os valores nas diferentes culturas, e não na condição humana, que é uma só.
http://www.pime.org.br/mundoemissao/atualidadesafricaafrica.htm
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